No meu prédio como em qualquer outro do mundo sempre morou um coronel. O coronel por volta dos seus 65 anos, acho eu. Baixinho, de óculos, cabelos ralos, não careca, que embora fossem poucos, tem um que de corte militar, com a barba sempre bem feita e aquelas bermudas de linho acima da cintura, por fora da blusa de linho quase sempre listrada ou que parece listrada, com um cinto de velho, a meia, sempre, como a bermuda e um sapato, às vezes sandália que pareça de couro. Quando nos mudamos ele era o síndico e recebeu-nos em sua casa. Eu, minha irmã e minha mãe. Sendo que éramos crianças, menos minha mãe que já era mãe da gente. Conhecemos sua casa, os quadros feitos com ovos pela sua “senhora” (como ele chamava sua mulher), a geometria do apartamento e etc... Depois dessa recepção, descobrimos nesse Coronel, um Hitler manso. Com uma voz mansa e um ar de nada me abala era como o víamos na portaria ou quando vinha reclamar que molhamos a escada depois que voltamos da praia, ou que apertávamos o botão do portão eletrônico. O fato é, depois do jantar em sua casa, o Coronel nos tratou sempre com uma arrogância. Sempre como, “vocês não são bem vindos”.
Quando deixei de ser criança, meu rosto mudou muito, eu cresci bastante, cresceram pelos pelo corpo e inclusive pela cara, ou seja, tenho barba. Era raro encontrar o Coronel, ele tinha abandonado seu reinado de síndico que durou uns sete anos e deixou, pra outro Coronel que tinha acabado de se mudar, todos os seus civis. Ah! Uma coisa importante a ser falada era que ninguém gostava do Coronel antigo. Só o deixavam de síndico porque ninguém mais queria ser. Então ninguém fazia nada a não ser reclamar e ele continuava lá, intacto. O Coronel novo chegou e é um síndico que não vejo muito. Mas o outro Coronel, eu encontrava as vezes e não nos falávamos. Entravamos no mesmo elevador e não nos olhávamos no rosto. Eu com minha barba e ele com sua bermuda acima da cintura. Uma vez, calhou de ele estar entrando no prédio com o portão aberto e eu chegar logo em seguida pra entrar. Dividiríamos o portão na mesma hora. Era o momento pra nos falamos, mas ele não perdeu a oportunidade: - Não posso deixar você entrar. Vou fechar a porta e você pede pro porteiro interfonar pra onde você vai- ele estava fingindo que não me conhecia e ainda me tratando como se fosse um desconhecido do prédio. Não quis saber, virei a cara, falei com licença, e comecei a entrar como se não tivesse ouvido nada. E ele continuou – Não posso deixar entrar no prédio quem não conheço não é verdade? Ia pelo elevador, mas quando vi que ele ia, virei a cara e fui de escada. E ele lá, inabalável com sua voz mansa e incrivelmente sincera. Sim. O que ele parecia era sincero. Acho que os anos de falar que não havia torturas pra sua mulher fez nele uma sensibilidade para falar a mentira como se fosse a verdade absoluta.
Vi o Coronel duas vezes antes de 15 minutos atrás. Fiz a mesma coisa que tinha feito sempre. Não falei. Uma vez vendo que ele entraria no elevador onde eu já me encontrava, não segurei porta nenhuma e subi vendo o seu rosto na janelinha da porta com um ar de “putz, vou ter que esperar”, mas na verdade o que ele passou na sua forma inabalável foi “foi, mas volta”.
Estava querendo falar do último encontro. Mudei de parágrafo porque estava confuso continuar naquele: Estava eu e minha irmã voltando de um passeio de carro, subimos pelos fundos, esperávamos o elevador, o elevador chega, abre-se a porta e vejo a mulher do Coronel saindo do elevador. Dois segundos depois ele saiu com uma mala na mão. Mas não era mais o Coronel de antes, ele estava diferente. Tinha a cara inchada e no pescoço uma faixa daquelas que se usam quando se torce o pescoço. Estava vestido do mesmo jeito de sempre com exceção de um casaco preto aberto. Em momentos diferentes, nos olhamos nos fundos dos olhos no trajeto, porta, minha irmã, eu, lugar onde pousar a mala e voltar pro elevador pra buscar mais. Mas minha irmã, vendo tanta mala e pouca força dos donos pra carregá-las, começou a ajudá-los. Foi ae que começou as minhas questões. Devo ajudar? O cara de repente deve ter caído no banheiro, essas quedas que os velhos têm. Estou sendo eu uma pessoa ruim não ajudando? Devo ajudar? (E minha irmã ajudando pra felicidade da senhora do Coronel). Eu do lado dele, vendo a cena. Os dois vendo as mulheres dialogarem e nós parados. Inventei, não me convencendo, que era mais fácil minha irmã ajudar sozinha já que é necessário mesmo só uma pessoa pra tirar as malas de um elevador. Pra espanto dos homens e surpresa alegre da senhora Coronel, minha irmã num impulso assustador de generosidade, pega umas duas malas e fala que vai levar até o carro. O Coronel, acho, que se sentiu constrangido com a ajuda e disse com aquele ar inabalável e a voz calma – não precisa. Não precisa. Tem o porteiro.- minha irmã ainda insistiu, mas ele recusou cordialmente.
Não sei porque, mas minha visão sobre ele mudou desses 20 minutos pra cá. Vendo aquele ar de inabalável instalado no sangue, vi um ser frágil. Um ser que se defende com mentiras. Um ser que se expõem ao contrário. Vi nele um homem antigo com alam de criança. Mas não era de uma criança que via um mundo sem fronteiras. Não era uma criança assustada. E de repente, não era mais criança e sim como um elefante velho, que é deixado pela manada, ele se encontrava. Sabe que seu tempo é pouco e como tudo é importante e sem importância. Sabe que seu tempo é pouco e não quer lembrar que é um mortal. Quer, por saber que ele, já já, acaba, viver ele. E afasta tudo que o desvirtua desse caminho. Mas isso agora, sem aquela arrogância, mas ainda com arrogância de quem não sabe ser gentil com quem não gosta.
Na porta de casa minha irmã me falou que ele tinha câncer na garganta. Eu entrando em casa e ele indo pro hospital com suas malas. Estou com uma sensação de não querer que ele morra. Pra que esse não tenha sido nosso último encontro. Quero mostrar que aceito ele, mesmo não aceitando. Quero poder gostar dele. Dá um nó no peito saber que você não gosta de uma pessoa que está para morrer. Quero pelo menos por educação entre inimigos pedir um favor pra ele. Que ele não morra enquanto eu não deixar de me sentir culpado com essa situação. Quem sabe, eu possa até contar uma piada pra ele. Rir com ele. Gostar dele. Sentir carinho. Afinal aprenderemos, “tu é responsável por aquilo que cativas”.

d..b - Queremos saber - Cassia Eller


beijos em todos os humanos....
o que você faria?

Um comentário:

Anônimo disse...

continuaria seguindo meus instintos, como voce fez ate esse momento. creio que as coisas sao assim, tudo que se faz leva sempre a fazer outras coisas. mesmo que seja a mesma coisa. tudo e novo. e sentimentos tambem se transformam...
butterfly efect...